Nem fascistas nem teleguiados: os bolsonaristas da periferia de Porto Alegre

Eles contrariam o estereótipo atribuído pelos críticos e fogem das ‘fake news‘. O EL PAÍS mergulhou no fenômeno de adesão ao candidato de extrema direita a partir da pesquisa de duas antropólogas.

A reportagem é de Naira Hofmeister, publicada por El País, 17-08-2018.

Cássio Martins tem 18 anos e quer que a lei do morro onde ele vive, ditada pelos donos do tráfico, valha também para o “asfalto”. Assim, ele não vai mais precisar esconder o celular sempre que sair dos limites do Morro da Cruz, vila na periferia de Porto Alegre que tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano da capitaldo Rio Grande do Sul, mas onde ele se sente confortável para ouvir música e checar o Facebook no telefone sem medo de ser roubado. Essa é a justificativa principal para dar o primeiro voto de sua vida para Jair Bolsonaro (PSL), o controverso candidato à presidência da República que promete rigor com a criminalidade.

Também são os problemas com a segurança que levam Anriel do Prado Neves, 24, a optar pela candidatura de extrema direita do parlamentar e capitão do Exércitoreformado. Sua convicção é tanta que até colou um adesivo com a cara do candidato na traseira do automóvel que dirige para um aplicativo de transporte. “Sei que tem gente que dá nota ruim por isso, mas tudo bem”, se resigna. Ele já foi assaltado duas vezes quando era taxista, mas o que preocupa mesmo Anriel é o tráfico e a guerra com a polícia. “Dos meus 30 amigos de infância, só sobraram dois. Os outros todos morreram, foram executados”, lamenta. No Morro da Cruz, metade das mortes de jovens entre 15 e 29 anos é por homicídio.

Para ambos, o perfil “linha dura” do militar, que promete endurecimento da legislação penal e a revisão do estatuto do desarmamento, poderia ajudar a solucionar os problemas.

Os dois estão na faixa etária em que Bolsonaro se destaca nas pesquisas eleitorais: entre os 16 e os 35 anos. Mas, à exceção de serem jovens, CássioAnriel e vários outros entrevistados pelo EL PAÍS no Morro da Cruz pouco têm em comum com o perfil que institutos de pesquisa desenham dos possíveis eleitores do presidenciável do PSL: eles não são os mais escolarizados (chegaram ao ensino médio), nem ricos e tampouco estão no Norte e Centro-Oeste do país. Também não se enquadram no estereótipo que os críticos do candidato dizem ter seus eleitores: são gente de fala branda, que defende opiniões com serenidade e argumentação, busca informações na imprensa e é, inclusive, capaz de discordar das propostas mais radicais de Bolsonaro.

Anriel, por exemplo, fica “com um pé atrás” sobre a ideia de liberar o porte de armaspara a população. Ele tem medo que discussões bobas de trânsito terminem em tragédia se alguém estiver com um revólver na cintura. Por outro lado, a redução da maioridade penal não é um problema. “Aqui, gurizada de 13 anos mata sem dó”, exemplifica. Cássio, por sua vez, gosta da ideia de estar “no mesmo nível” de um potencial assaltante para sentir-se protegido e toparia ter uma arma. Mas confessa que o alerta do pai, sobre o radicalismo de Bolsonaro, o deixa intrigado: “Ele tem receio de que se não conseguir fazer o que pretende, possa dar um golpe ou coisa parecida”, revela.

Anriel tem perfil mais liberal: admira o ex-prefeito e candidato a governador de São Paulo João Doria (PSDB) e faz discurso contra a burocracia para empreendedores. Mas tem consciência da profunda desigualdade brasileira e acha que ampliar oportunidades aos mais pobres é tarefa do Estado. Quando faz corridas para estudantes (ele detesta pegar passageiros das humanas na federal do Rio Grande do Sul), nota diferenças: “Se eu pego corrida na UFRGS é só Assunção, Menino Deus, bairros finos. Mas se é nas faculdades privadas, o destino é Restinga, Pinheiro, só periferia”. Por isso, embora contrário a cotas raciais, ele é simpático à reserva de vagas públicas a quem tem baixa renda.

A pesquisa

A complexidade do pensamento desses jovens eleitores de Bolsonaro e a disponibilidade que eles têm para o debate de propostas chamou a atenção de duas antropólogas que pesquisam juventude, consumo e política no Morro da Cruz há quase uma década e que desenvolvem agora uma nova fase do trabalho que só termina depois das eleições. Foi acompanhando o trabalho de campo de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalcoque a reportagem do jornal esteve no local numa sexta-feira de agosto. “Eles não são fascistas, pelo contrário, tem argumentos para defender sua posição”, observa Rosana.

De fato, tanto Anriel como Cássio se sentem incomodados com os rótulos costumeiramente a eles atribuídos quando revelam ser potenciais eleitores do militarda reserva. “Me dizem que sou lixo, mas isso não descreve como sou. Eu não vou discriminar outra pessoa só porque gosta da Dilma ou do Temer”, queixa-se Cássio.

Anriel também se ressente das frequentes investidas de adversários: “Me chamam de racista. Justo eu, que namoro uma negra… e ela discorda da minha posição, é contra o Bolsonaro”, argumenta, confirmando, aliás, outro dos achados das pesquisadoras.

Em grupos focais que vem realizando em escolas, as antropólogas Lucia e Rosanaperceberam que o voto em Bolsonaro é também uma questão de gênero. “As meninas são muito articuladas na crítica ao machismo que o candidato demonstra”, assevera Rosana. A convicção delas era tanta que foi preciso criar um grupo exclusivamente masculino para que os rapazes se sentissem à vontade para declarar seu voto, o que as pesquisadoras também interpretam como uma reação ao feminismo crescente.

A namorada de Cássio faz campanha abertamente contra o capitão reformado, mas para ele o candidato não parece preconceituoso e suas opiniões mais polêmicas soam mais como galhofa: “Dizem que Bolsonaro é racistamachista e homofóbico, mas acho que estão distorcendo. Uma pessoa assim não é legal e ele não parece ser alguém ruim”, analisa.

Ao mesmo tempo, ele é crítico ao ataque de Bolsonaro à deputada federal Maria do Rosário (PT). Em duas ocasiões, o presidenciável do PSL disse que não estupraria sua colega na Câmara Federal porque ela “é feia” e “não merece”. Bolsonaro já foi condenado no Superior Tribunal de Justiça por essa agressão, e ainda responde a outro processo, em andamento no Supremo Tribunal Federal. “Totalmente desrespeitoso”, condena Cássio.

A grosseria é o ponto fraco do candidato mesmo na opinião dos mais aficcionados. No Morro da Cruz, uma dessas figuras é Cátia Cunha de Almeida Lopes, 40, que exibe num caderno uma lista com 28 motivos para votar em Bolsonaro e viaja todos os anos para o Rio de Janeiro em busca de um encontro com o ídolo. “Já entrei na casa dele, no condomínio, conheci a família… Mas ver ele mesmo, pessoalmente, foi uma vez só, e por acaso”, recorda, exibindo a caneca em que mandou imprimir a foto que registra o momento. Ela também guarda revistas elogiosas ao candidato, que ocupa o mesmo lugar da dupla Bruno e Marrone no seu panteão pessoal. Mesmo assim, para a técnica em enfermagem, na discussão com Maria do Rosário “ele pegou pesado”, embora tenha sido uma reação dita no calor dos acontecimentos —perdoável, portanto.

Anriel também relativiza outra polêmica, mesmo mantendo um tom crítico: o voto de Bolsonaro contra Dilma Rousseff, quando ao lado de outros 366 parlamentares, na Câmara, abriu caminho para o impeachment que viria na sequência. Na ocasião, o candidato do PSL fez de seu voto uma homenagem ao coronel Carlos Brilhante Ustra, condenado por torturar presos políticos durante a ditadura militar.

“Eu tenho pena da Dilma, aquilo não era para ter ocorrido. Passamos uma vergonha na frente de outros países. Ela tinha votos para estar lá”, lamenta. Ainda assim, entende a posição do seu candidato: “Ele estava fazendo política. Bolsonaro é um democrata”, acredita.

O morro

Os bairros onde o Morro da Cruz está localizado não são muito familiares ao porto-alegrense médio (São José é o principal, mas também a Vila João Pessoa e Coronel Aparício Borges). Mas nem por isso a favela é desconhecida da população em geral: lá se celebra anualmente a procissão de Páscoa mais famosa da cidade, com a encenação da via sacra que termina justamente no alto da montanha, debaixo da cruz que lhe dá nome. O morro também está a meio caminho entre as duas universidades mais tradicionais da capital, a católica PUC e a federal UFRGS, e é pelo mesmo corredor onde passam os ônibus dos estudantes que se acessa a comunidade, na avenida Bento Gonçalves, uma das mais importantes artérias de Porto Alegre.

Não é raro ouvir de um morador do Morro da Cruz que ele “vai pra Porto Alegre” quando precisa sair da localidade (são nove quilômetros até o centro). Lá tem de tudo: supermercado, farmácia, mecânica, padaria. Placas de freteiros e de confeiteiras são muitas, penduradas nas grades de ferro das casas. Mesmo a parte alta do morro é abastecida com transporte coletivo, os postos de saúde atendem a população apesar da precariedade, as escolas estão abertas. Em uma lan house que estava cheia perto do meio-dia de uma sexta-feira, os cartazes avisam: “É proibido pornografia”. Quem não atender é punido com a “perda de todos os créditos”. Já falar palavrão ou ter um ataque histérico são falhas menos graves, custam 30 créditos a quem cometer os deslizes.

À primeira vista, portanto, o Morro da Cruz não parece uma comunidade vulnerável. Anriel mora com a irmã em uma casa de concreto e rua pavimentada. Cássio ajuda a mãe na creche particular que ela mantém também em construção de alvenaria, bem defronte a uma parada de ônibus. Mas as estatísticas são claras: a região do Morro da Cruz está na posição 581 entre os 722 locais acompanhados regularmente pelo Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil. Segundo o IBGE, 5% dos domicílios da localidade são considerados indigentes – seus moradores sobrevivem com ¼ de salário mínimo por pessoa, algo em torno de 250 reais. Outros 20% estão em condição levemente melhor: são os pobres, cuja renda per capita é de meio salário mínimo. Entre 2000 e 2010, o rendimento médio dos chefes de família do Morro da Cruz caiu pela metade.

E a realidade pode ser ainda pior do que mostram os dados oficiais, porque há uma imensidão de áreas irregulares no entorno do centrinho mais organizado, nos becos. Essa parte não entra nas estatísticas. Por exemplo, se os dados do IBGE contabilizam uma população de pouco mais de 16.000 pessoas, estima-se que a vila tenha entre 35 e 45 mil moradores. “São muitas ocupações, é impossível saber com precisão”, argumenta Lucia Mury Scalco, que divide seu tempo no morro entre a pesquisa de pós-doutorado em antropologia e um trabalho social que criou depois de 12 anos estudando a população do local.

No mapa de vulnerabilidade do Departamento de Habitação (Demhab) de Porto Alegre, há duas enormes áreas de risco pintadas de azul sobre a região da favela, além de outras duas pequenas. A maior parte das ocorrências da Defesa Civil na comunidade se refere a desabamentos ou desmoronamentos.

Na última eleição presidencial, em 2014, 20% dos moradores do Morro da Cruzhabilitados ao voto não comparecerem às urnas. Anriel não tem certeza, mas talvez tenha ajudado a engordar as estatísticas: “Acho que justifiquei, porque o candidato que eu ia votar, morreu”, diz, em referência a Eduardo Campos (PSB). Sua substituta na chapa PSB-Rede, Marina Silva, não o atraiu tanto (nem antes nem agora) e ele se absteve.

Quem votou em uma das cinco zonas eleitorais do bairro São José, onde fica a maior parte do Morro da Cruz elegeu Dilma Rousseff (PT) —a candidata petista venceu Aécio Neves (PSDB) em todas as seções eleitorais da região. A sigla tem certa tradição na localidade: a população do morro sempre foi muito atuante nas assembleias do Orçamento Participativo, criado no final dos anos 80 durante a gestão de Olívio Dutra na prefeitura, figura sempre lembrada e referência no bairro.

Cássio lembra que os pais e os tios falam rotineiramente que “o PT ajudou muito o povo mais pobre”, mas ele mesmo não sabe opinar sobre se a vida era melhor ou pior antes da era Lula, por exemplo —tinha dois anos quando o ex-mandatário assumiu o poder.

Por essas e outras razões, as antropólogas acham que o jogo no Morro da Cruz pode ter virado. “Nas últimas semanas, muitas pessoas nos abordam na rua para dizer que vão votar no Bolsonaro. Sabem que estamos pesquisando o assunto e vem nos dar suas justificativas”, revela Rosana.

Dos rolezinhos a Bolsonaro

Elas percebem que potencialmente os jovens estão de fato declarando voto em Bolsonaro – e isso surpreendeu a ambas, que acompanham os movimentos da juventude do lugar desde 2009. Elas haviam desenvolvido uma tese de que as excursões aos shopping centers apelidadas pelos jovens da periferia de “rolezinhos” ao mesmo tempo que eram uma atitude juvenil voltada consumo, também tinham um forte caráter reivindicatório de inclusão e de circulação no espaço público. Intimamente, as pesquisadoras concluíram que havia ali um embrião de um movimento político promissor. Quando as ocupações estudantis secundaristas explodiram em 2016 – no Rio Grande do Sul mais de uma centena escolas foram ocupadas durante meses – tudo parecia confirmar a hipótese. Mas quando foram ao Morro da Cruz perguntar aos jovens sobre as “ocupas”, a maioria ignorava ou até desprezava o movimento secundarista. “Eram os vagabundos, maconheiros”, ilustram.

Foi nesse caldo surpreendente que a candidatura de Jair Bolsonaro começou a decolar, pelo menos no Morro da Cruz, em Porto Alegre. “Não há um padrão nem no perfil dos jovens eleitores de Bolsonaro nem nos argumentos que usam para defendê-lo”, dizem as pesquisadoras. Há simpatizantes do presidenciável em todos os universos possíveis: no Funk, no tráfico, na igreja ou na escola. “Cada um desses grupos juvenis se apega a uma parte do repertório que, em comum, apenas passa pela figura de um homem que oferece uma solução radical à vida como ela é”, sintetiza Rosana, que junto com Lúcia finaliza um livro sobre a pesquisa completa, que deve chamar From Hope to Hate: the rise and fall of Brazilian emergence (Da esperança ao ódio: ascensão e queda da emergência brasileira).

Mas há outros elementos em jogo. Anriel, por exemplo, se decidiu no ensino médio, “antes dos protestos” do últimos protestos. Como no Morro da Cruz não há escolas secundárias, Anriel frequentou o tradicionalíssimo colégio estadual Julio de Castilhos, na região central de Porto Alegre, um caldeirão da política local, onde estudaram Leonel Brizola e Luciana Genro, entre uma galeria de celebridades da vida pública brasileira (Caco Barcelos e o avô do atual presidente do TRF4, Carlos Eduardo Thompson Flores também foram alunos).

A militância estudantil é uma marca do “Julinho”, como a escola é conhecida no Rio Grande do Sul. “Vinha gente principalmente dos partidos de esquerda, como o PSOL. Eu ouvia, mas comecei a procurar o outro lado e vi que concordava mais”, recorda.

O argumento usualmente desqualificado pela esquerda de que o Bolsa Famíliaincentivava as pessoas a não procurarem trabalho fez sentido para ele – que tinha uma irmã recebendo o benefício, porque a creche da filhinha exigiu o cadastro no programa para aceitar a matrícula da menina. “Eu sei que tem gente que precisa mesmo, mas também conheço muitos que ficaram parados depois. Acho que deveria ser obrigatório, para quem recebesse, ir todos os dias no SINE para arrumar emprego”, opina.

Ele também desconfiava do expediente utilizado pelos partidos tradicionais para arregimentar apoios da estudantada do Julinho. “Eles ofereciam lanche para quem ia nos protestos”, revela. Às vezes também prometiam algum benefício imediato para jovens lideranças da escola. Mas o problema prático da falta de professores, por exemplo, não era atacado. “A gente nunca teve professor fixo de história e filosofia, posso contar nos dedos as aulas que tive e era muito fácil de passar”, assegura Anriel.

Acostumado a vincular militância partidária com algum tipo de “pagamento”, ele decidiu adesivar a traseira do seu automóvel no dia em que viu a recepção que o candidato teve no aeroporto de Porto Alegre. Ele estava a trabalho no local – por isso lamenta não ter podido descer do carro para chegar mais perto. “Era um fanatismo impressionante. Nunca vi ninguém receber assim um candidato sem ser pago”, explica.

Informação

A militância espontânea é um fator citado por muitos dos eleitores de Bolsonaro no Morro da Cruz entrevistados pela reportagem do EL PAÍS. Outro ponto repetido por vários jovens é que o candidato é visto como alguém sem papas na língua, que não tem medo de dizer o que pensa e cuja comunicação na internet – feita sobretudo por memes – fala diretamente a esse público. “Eu deslizo o meu Facebook e só aparecem as coisas dele, nada dos concorrentes”, exemplifica Juan da Paz, 19 anos.

Apesar disso, os simpatizantes do presidenciável não são nem de longe pessoas desinformadas. A maioria procura informação fora das redes do candidato e alguns têm o costume de conferir postagens antes de repassar fake news. “Quando morreu a Marielle (Franco), eu quase compartilhei que ela era envolvida com o tráfico. Mas aí vi que nenhum jornal dizia isso e não fui atrás”, revela, aliviado, Anriel.

Eles também querem ouvir o que os outros candidatos têm a dizer e acompanham entrevistas e declarações. A participação de Bolsonaro no Roda Viva foi acompanhada por todos, mas não na TV, e sim, pelas redes sociais. Anriel, por exemplo, precisou resgatar o vídeo no YouTube na manhã seguinte, embora tenha tentado ver ao vivo: “Travou a transmissão do Twitter dele e não consegui mais assistir”.

A entrevista ficou registrada na memória como uma batalha entre o candidato e os jornalistas – outro argumento repetidamente levantado a seu favor: “Estão perseguindo ele, o tempo todo tentam fazer ele cair numa pegadinha”, critica. “Ninguém perguntou sobre o que importa: educação, saúde. Só sobre tortura, essas coisas que já passaram”, argumenta o motorista – repetindo, de certa maneira, o pensamento do próprio candidato que mencionou no programa a lei da anistia: “São feridas que não devem mais ser lembradas”.

Oposição

Apesar de ter grande apoio, Bolsonaro não é unanimidade no Morro da Cruz —e há muitos jovens contra suas propostas. Mas mesmo quem o critica, reconhece qualidades: “Eu não gosto dele e não votaria nele, mas ele propõe coisas diferentes do que estamos acostumados”, avalia Shaiane Carolina Azevedo, de 19 anos. “As propagandas dos outros são todas iguais”, lamenta Bianca Martins, 20 anos, também contrariada.

A pauta da segurança, por exemplo, é reconhecida como importante mesmo por seus detratores. “Ele tem objetivos maravilhosos, fantásticos. Quem não quer sair tranquilo, de noite, na rua? Eu tenho filhos e fico preocupada se demoram a chegar do serviço, da faculdade… Mas como ele sugere resolver, vai instigar mais a violência. O Brasil dele não é real”, contesta Fabiana Carniel Gonçalves, 42 anos.

Por motivos como esses, Camila Diefenthaler Zafanelli, 19 anos, está tentando virar o voto do pai, bolsonarista convicto. “A gente conversa muito em casa, ele super apoia (o Bolsonaro), mas eu estou insistindo”.

Crise política e desesperança geral. Artigo de Leonardo Boff

“No Brasil de hoje devemos recuperar a esperança de que o legado final da presente crise será a configuração de um outro tipo de Estado, de política, de partidos, de justiça e do próprio destino do país”, escreve Leonardo Boff, escritor, teólogo e filósofo.

Eis o artigo.

Um dos efeitos perversos de nossa crise nacional é sem dúvida a desesperança que está contaminando a maioria das pessoas. Ela se manifesta pela angústia de não ver nenhum horizonte do qual se possa vislumbrar um solução salvadora. Emerge a sociedade do cansaço e da perda da alegria de viver.

São as consequências da ausência de sentido, de que tudo vai continuar na mesma lógica, feita de corrupção, falsificação das notícias (fake news) e daí da realidade, maledicência generalizada, a dominação dos poderosos sobre as massas entregues à sua própria sorte.

Tal desolação alcança também a percepção do futuro de nosso mundo e da humanidade, pouco importa o que possa ocorrer. Bem observou o Papa Francisco em sua encíclica “sobre o cuidado da Casa Comum”: ”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Para as próximas gerações poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O estilo de vida atual, por ser insustentável, só pode desembocar em catástrofes”(n.161). Mas quem pensa nisso a não ser quem acompanha o discurso ecológico mundial?

Portanto, além das múltiplas crises sob as quais sofremos, temos ainda esta sombria de natureza ecológica.

Neste contexto voltam os pensamentos de coloração niilista como o do Nobel em biologia Jacques Monod:”É supérfluo buscar um sentido objetivo da existência. Ele simplesmente não existe. Os deuses estão mortos e o homem está só no mundo” ( O acaso e a necessidade, Vozes 1979, p.108).

Ou o famoso C. Levy-Straus que tanto amava o Brasil deixou escrito no seu admirável ”Tristes trópicos” (1955):”O mundo começou sem o homem e terminará sem ele. As instituições e os costumes que eu teria passado a vida inteira a inventariar e a compreender, são uma eflorescência passageira de uma criação em relação com a qual elas não têm sentido, senão, talvez, aquele que permite à humanidade a desempenhar o seu papel”(p.477).

Mas será que o ser humano não é o inverso de um relógio? Este funciona em si mesmo e anda conforme seu mecanismos internos. O ser humano não é um relógio. Ela anda bem quando estiver em sintonia permanente com o Todo que o envolve por todos lados e está para além dele mesmo.

Portanto, temos que deixar de lado todo antropocentrismo e assumirmos uma leitura mais holística do sentido da vida.

Diferentemente pensava o físico britânico Freeman Dyson (*1923):”quanto mais examino o universo e os detalhes de sua arquitetura, mais acho evidências de que o universo sabia que um dia, lá na frente, nós seres humanos, iríamos surgir”(Disturbing the Universe, 1979, p. 250). Quase com as mesmas palavras o diz talvez o maior cosmólogo atual, Brian Swimme (The Universe Story,1996 p.84).

As tradições espirituais e religiosas são um hino ao sentido da vida e do mundo. Por isso observava o grande estudioso das utopias Ernst Bloch em seus dois grossos volumes O princípio esperança: “Onde há religião aí há sempre esperança”.

A questão do sentido é inadiável. Cito aqui o mais critico dos filósofos Emmanuel Kant:”Que o espírito humano abandone definitivamente as interrogações metafísicas (do sentido do ser e da existência) é tão inversossímil quanto esperar que nós para não respirar um ar poluído, deixássemos, uma vez por todas, de respirar”(Prolegomena zu einer jede künftigen Metaphysik, A 192, vol.3 p.243).

Porque o Cristo do Corcovado se escondeu atrás das nuvens, não significa que tenha deixado de existir. Ele está lá no alto da montanha estendendo seus braços e abençoando a nossa sofrida população.

No Brasil de hoje devemos recuperar a esperança de que o legado final da presente crise será a configuração de um outro tipo de Estado, de política, de partidos, de justiça e do próprio destino do país.

Termino com o profeta Jeremias que viveu no tempo do cativeiro babilônico sob o rei Ciro. Os habitantes da Babilônia zombavam dos judeus porque já não cantavam suas canções e, desanimados, dependuravam seus instrumentos nos galhos dos cicómoros. Perguntaram a Jeremias:”Você tem esperança”? Ao que ele respondeu: “eu tenho esperança de que o rei Ciro com todo o seu poder não poderá impedir o nascimento do sol”. E eu acrescentaria não poderá impedir o amor e as crianças que daí nascerem e renovarem a espécie humana.

Semelhante esperança alimentamos nós de que aqueles que provocaram esta crise, rasgaram a Constituição e não seguiram os ditames da justiça não prevalecerão. Sairemos mais purificados, mais fortes e com um sentido maior do destino a que nosso país está chamado em benefício para todos, a começar para os mais pobres e para a inteira humanidade.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/581851-crise-politica-e-desesperanca-geral

A Vale está atropelando quilombolas com processos para duplicar ferrovia no Maranhão

Líderes de quilombo foram processados com base em foto em que aparecem de costas – e muitos sequer aparecem na imagem.

A reportagem é de Sabrina Felipe, publicada por The Intercept, 13-08-2018.

“O senhor se vê em alguma dessas quatro fotos, seu Benedito?”, pergunto ao lavrador Benedito Pires Belfort, 75 anos. Ele aperta os olhos, ajeita os óculos no rosto, se aproxima da tela do computador e examina as imagens. “Não, não me vejo.”

Informo a ele que foi com base em um boletim de ocorrência e nas quatro fotos em preto e branco apresentadas, bastante granuladas e com a maioria das 28 pessoas aparecendo de costas que ele e mais cinco quilombolas foram processados pela mineradora transnacional Vale S.A. em 2014. É impossível ver com nitidez o rosto das cinco que aparecem de frente. “É mesmo?!”, pergunta, rindo da inconsistência da ação de reintegração de posse ajuizada pela empresa.

Em 23 de setembro daquele ano, mais de 500 quilombolas de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, bloquearam os trilhos da Estrada de Ferro Carajás, a EFC, da Vale. O bloqueio aconteceu na altura do quilombo Santa Rosa dos Pretos para exigir que a mineradora e o poder público fossem transparentes no processo de consulta à população sobre as obras de duplicação da ferrovia, em curso desde 2013. Os quilombolas exigiam também que o governo federal cumprisse demandas relativas à demarcação das terras remanescentes de quilombos.

Estrada de Ferro Carajás. Fonte: Wikicommons

O processo de titulação de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo foi segurado por pelo menos três anos pela Vale, que em 2009 contestou a demarcação dos dois territórios alegando que não foi deixada terra suficiente para a duplicação da ferrovia. O protesto durou cinco dias e só terminou em 27 de setembro, quando uma comitiva do governo federal se apresentou no acampamento para conversar com a população.

Belfort não só não aparece nas fotos que a Vale usou para processá-lo, como também não participou do primeiro dia de protesto, mesma data em que a ação de reintegração de posse foi movida. Ele havia passado por uma cirurgia em 2011 para a retirada de um coágulo no cérebro, e a família quis poupá-lo do calor antes que o acampamento estivesse totalmente montado, com proteções contra o sol. “No dia 24 [segundo dia de protesto], não me seguraram mais. Eu fui e fiquei até o dia que levantamos nossas baterias e viemos pra casa.”

De autores a réus

Anacleta Pires da Silva, 52 anos, é outra quilombola de Santa Rosa dos Pretosprocessada. Assim como Belfort, ela não se reconheceu em nenhuma das quatro fotos. Ela e as outras cinco pessoas citadas na ação da Vale são lideranças dos territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.

Com exceção do lavrador, todas apresentaram denúncias contra a mineradora em ação civil pública ajuizada em 2011 pelo Ministério Público Federal contra a Vale e o Ibama. A ação, que ainda tramita, foi aberta por que o grupo alega que há irregularidades no estudo de impacto ambiental das obras de duplicação da estrada de ferro. Segundo o MPbF, a mineradora foi omissa ao não considerar no estudo Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo como territórios impactados pelo empreendimento. Em 2012, a Justiça Federal obrigou a empresa a realizar uma série de ações de mitigação e compensação nos dois territórios.

Seis anos após a decisão, a Vale ainda não cumpriu todo o acordo, segundo manifestação do juiz federal Ricardo Macieira e depoimentos de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. Já a duplicação da EFC está 85% finalizada, de acordo com a empresa, com 542 km duplicados do total de 637 km. A conclusão das obras está prevista para o fim deste ano.

No dia do protesto, a mineradora enviou um ofício ao juiz informando sobre o bloqueio. Disse não ter nada a ver com o assunto, alegou ser a única prejudicada com o fechamento da EFC e pediu uma audiência sobre o tema. No dia seguinte, o juiz federal negou o pedido alegando que a insatisfação das comunidades não seria resolvida em audiência, mas, sim, no momento em que a Vale cumprisse as obrigações já demandas pela Justiça na ação civil pública.

Questionei a Vale sobre como a empresa identificou as pessoas nas fotos apresentadas como provas e pedi que apontasse nas imagens cada indivíduo citado na ação de reintegração de posse. A mineradora não respondeu a essas e outras questões relativas ao processo e informou que “não comenta decisões judiciais.”

Segundo Caroline Rios Santos, da rede Justiça nos Trilhos, advogada dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo no processo, mover ações de reintegração de posse com provas inconsistentes é uma prática comum da mineradora.

“Na maioria das ações decorrentes de protesto nas quais a gente tem atuado, a identificação é super vaga. Não há uma preocupação, por exemplo, de indicar os motivos de aquelas pessoas serem apontadas como rés na ação. Em alguns casos são apenas moradores da região que nem participaram da manifestação”, ela me disse. “Mas a jurisprudência entende, em casos como esse, que é um ônus grande para a parte autora ter que identificar especificamente cada pessoa, e aceita uma identificação mais genérica.”

Nunca mais ocupar a EFC

Mesmo após três anos desde que a ação de reintegração de posse foi movida, e mesmo com a desobstrução da via – objeto da ação – ao fim do protesto, a juíza Mirella Freitas, titular da 2a. Vara da Comarca de Itapecuru-Mirim, intimou os seis quilombolas para uma audiência de conciliação com a Vale em junho de 2017.

A proposta do advogado da Vale foi que os quilombolas nunca mais, por qualquer motivo, ocupassem os trilhos da EFC, segundo Anacleta Pires da Silva, uma das líderes do movimento. Como contraproposta, Silva exigiu que a mineradora retirasse das terras quilombolas todos os trilhos da estrada de ferro. Não houve acordo.

No último dia 9 de julho, quase quatro anos depois da desobstrução da EFC, a juíza Mirella Freitas determinou que fosse feita “a citação por edital das demais pessoas que participaram da invasão à EFC.” A advogada da rede Justiça nos Trilhos afirmou que não há, nos autos do processo, nenhuma notícia de nova manifestação ou perturbação da posse da empresa. “Inclusive, ao assumir obrigações com as comunidades na ação civil pública, ela [Vale] reconhece a legitimidade da reivindicação”, explicou a advogada. A defesa dos quilombolas considera que o processo perdeu a razão de existir no momento que a Vale se comprometeu com as contrapartidas negociadas com o MP.

Belfort é escolado na defesa de sua terra. Há quatro décadas, enfrentava grileiros e fazendeiros face a face. Sua luta pelo quilombo Santa Rosa dos Pretos seguia o rastro da batalha pregressa dos homens e mulheres sequestrados na Guiné-Bissau nos séculos 18 e 19 e trazidos a Itapecuru-Mirim para trabalharem como escravos em fazendas de algodão, café e cana de açúcar de invasores europeus.

Belfort brigava por uma terra conquistada na ponta da chibata. “Eu conversava com grileiro de olho a olho e dizia ‘o senhor está errado, nós vamos resolver o problema aqui, e, se não resolver, vamos levar pra justiça. E levava. Eu nunca tive medo”, ele me disse. Nos anos 1980, chegou a peitar o então vice-governador, João Rodolfo Ribeiro Gonçalves, que havia colocado gado para pastar na roça de mandioca de Benedito, destruindo a produção. Na ação direta e no argumento, a briga foi vencida pelos quilombolas.

Hoje, porém, as coisas mudaram. O antagonista não tem rosto e nem se apresenta para o confronto. Age à distância e em silêncio. Para o lavrador, a continuação do processo, tanto quanto seu início, não tem sentido.

“Quando eu recebi a notícia do processo, pra mim aquilo não existiu. A gente não tava tirando nada da Vale. A gente tava brigando pelo nosso direito, e, se a Vale tava com a culpa, ela tinha que desocupar o que era nosso”, diz o lavrador. “Ser processado pela mineradora intimidou o senhor na sua luta?”, perguntei. “Não. Na época que eu era delegado sindical, eu resolvia as coisas sozinho. Agora, nós temos vários companheiros, amigos, não só daqui de Itapecuru, como de São Luís, Rio de Janeiro, São PauloBrasília, Estados Unidos, e com isso a gente se fortalece muito mais. Agora é que não dá de ter medo. Essa luta eu só deixo quando morrer.”

Aumenta a pobreza e a extrema pobreza no Brasil

“O Brasil não deve cumprir o objetivo 1 dos  ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que trata da “Erradicação da Pobreza” e que estabelece: “Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares” até 2030. Em vez de cair, o número de pobres e de indigentes (extrema pobreza) subiu, escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 13-08-2018.

Eis o artigo.

Fonte: EcoDebate

A economia brasileira vive a sua mais longa e mais profunda recessão da história republicana. Um dos resultados é o aumento da pobreza e da extrema pobreza devido à queda da renda per capita e ao aumento do desemprego que atingem a população mais carente. É o que mostra o gráfico acima, retirado do Relatório LUZ 2018, do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030.

O número de pessoas na pobreza, no Brasil, em 1993, estava em 45,6 milhões de indivíduos. Este número caiu para menos de 40 milhões depois do lançamento do Plano Real (e da redução da inflação) e chegou a 41,8 milhões em 2003. Com a retomada do crescimento econômico durante o superciclo das commodities e ao aumento do gasto social a exclusão social caiu rapidamente e o número de pessoas em situação de pobreza diminuiu para 14,1 milhões de pessoas em 2014. Mas depois do estelionato eleitoral de 2014 e no segundo mandato da dupla Dilma-Temer, a pobreza voltou a subir, chegando a 17 milhões em 2015, 21,6 milhões em 2016 e cerca de 22 milhões em 2017.

A indigência teve comportamento semelhante. O número de pessoas na extrema pobreza no Brasil, em 1993, estava em torno de 20 milhões, caindo para algo em torno de 14 milhões depois da implantação do Plano Real. Em 2013, estava em torno de 13 milhões e caiu para 5,2 milhões de pessoas em 2014. Mas o número de pessoas em situação de extrema pobreza aumentou para 6,4 milhões em 2015, 10 milhões em 2016 e 11,8 milhões em 2017.

Não há dados ainda para o ano de 2018, mas a expectativa de retomada da economia e do emprego não está ocorrendo conforme previa o governo e, provavelmente, o número de pessoas em situação de pobreza e de indigência aumente também em 2018. Ainda mais com a desvalorização cambial. Ou seja, o Brasil está regredindo no que diz respeito ao objetivo número 1 dos ODS.

A redução da pobreza é um processo que vem ocorrendo no longo prazo no Brasil. Avanços civilizacionais têm melhorado a qualidade de vida dos cidadãos em termos de renda, educação e saúde, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial. Não sem novidade, a maior redução da pobreza no Brasil ocorreu nos tempos do chamado “milagre econômico” e da “economia em marcha forçada”, isto é entre o final da década de 1960 e o ano de 1980.

A pesquisadora Sonia Rocha, em texto publicado no XXV Fórum Nacional do BNDES, em maio de 2013, documentou o processo de redução da pobreza no Brasilentre 1970 e 2011. Na década de 1970, a proporção de pobres no país caiu fortemente de 68,4% em 1970 para 35,3% em 1980. A pobreza voltou a subir durante a recessão ocorrida no governo Figueiredo, entre 1981 e 1983. Caiu especialmente durante o processo de congelamento de preços do Plano Cruzado e voltou a subir para a casa de 30% durante a recessão dos governos Sarney e Collor. Depois do governo Itamar, a pobreza foi reduzida para algo em torno de 20% e chegou ao nível mais baixo, em torno de 10% no final do governo Lula.

Portanto, a pobreza vem caindo no Brasil no longo prazo, mas não de forma linear. A experiência passada mostra que nas crises econômicas a pobreza sobe e volta a cair na retomada da economia. Contudo, este padrão pode não se repetir na atualidade, pois a atual recessão é a mais longa e profunda e a que tem mostrado o ritmo mais lento de recuperação. Além do mais, o melhor período do bônus demográfico já passou e a janela de oportunidade começou a se fechar.

Oxalá o próximo governo, a ser eleito em 2018, consiga por ordem na casa e possa cumprir com as metas acordadas na Agenda 2030 da ONU. Porém, o nível do debate eleitoral até o momento não tem gerado muito otimismo no eleitorado. O país utópico do futuro sem pobreza está cada vez mais distante e o Brasil distópico é a realidade que insiste em permanecer presente.

O neofascismo, onda mundial

“O fascismo sempre foi criminal. Criou a shoá (eliminação de milhões de judeus). Usou a violência como forma de se relacionar com a sociedade, por isso nunca pode nem poderá se consolidar por longo tempo. É a perversão maior da sociabilidade humana. No Brasil não será diferente”, escreve Leonardo Boff, escritor, teólogo e filósofo.

Eis o artigo.

fascismo é uma derivação extremada do fundamentalismo que tem larga tradição em quase todas as culturas. S. Huntington em sua discutida obra Choque de civilizações denuncia o Ocidente como um dos mais virulentos fundamentalistas. Imagina que sua cultura é a melhor do mundo, possui a melhor religião, a única verdadeira, a melhor forma de governo, a democracia, a melhor tecnociência que mudou a face do planeta e que lhe conferiu a capacidade de destruir todos os seres humanos e parte da biosfera com suas armas letais.

Conhecemos o fundamentalismo islâmico e outros, também de grupos da Igreja Católica oficial que ainda creem ser ela a única e exclusiva Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação. Tal visão errônea abre espaço para a satanização e até a perseguição de outras denominações cristas e não cristas. Graças a Deus temos o Papaatual da razoabilidade e do bom senso que invalida tais distorções.

Todo aquele que pretende ser portador exclusivo da verdade está condenado a ser fundamentalista e fechar-se sobre si mesmo, sem diálogo com os outros.
Aqui vale recordar as palavras do grande poeta espanhol António Machado: “Não a tua verdade. Mas a verdade.Vem comigo buscá-la. A tua guarde-a para ti mesmo”. Se juntos a procurarmos, ela será plena.

fascismo nasceu e nasce dentro de um determinado contexto de anomia, desordem social e crise generalizada. Desaparecem as certezas e as ordens estabelecidas se debilitam. A sociedade e os indivíduos têm dificuldade em viver em tal situação. Cientistas sociais e historiadores como Eric Vögelin (Order and History,195; L. Götz, Entstehung der Ordnung 1954; Peter Berger, Rumor de Anjos: a sociedade moderna e redescoberta do sobrenatural, 1973), mostraram que os seres humanos possuem um tendência natural para a ordem. Lá onde chegam criam logo uma ordem e o seu habitat. Quando esta desaparece usa-se comumente a violência para impor certa ordem sem a qual não se forma a coesão social da convivência.

O nicho do fascismo encontra nesta desordem seu nascedouro. Assim com o final da Primeira Guerra Mundial gerou-se um caos social, especialmente na Alemanha e na Itália. A saída foi a instauração de um sistema autoritário, de dominação que monopolizou a representação política, mediante um único partido de massa, hierarquicamente organizado, enquadrando todas as instâncias, a política, a economia e a cultural numa única direção. Isso só foi possível mediante um chefe (Füher na Alemanha e o Ducce, na Itália) que organizaram um Estado corporativista autoritário e de terror.

Como legitimação simbólica cultuavam-se os mitos nacionais, os heróis do passado e antigas tradições, geralmente num quadro de grandes liturgias políticas com a inculcação da ideia de uma regeneração nacional. Especialmente na Alemanha os seguidores de Hitler se investiram da convicção de que a raça alemã branca é “superior”às demais com o direito de submeter e até de eliminar as inferiores.

A palavra fascismo foi usada pela primeira vez por Benito Mussolini em 1915 ao criar o grupo “Fasci d’Azione Revolucionaria”. Fascismo se deriva do feixe (fasci) de varas, fortemente amarradas, com um machado preso ao lado. Uma vara pode ser quebrada, um feixe, dificilmente. Em 1922/23 fundou o Partido Nacional Fascista que perdurou até sua derrocada em 1945. Na Alemanha se estabeleceu a partir de 1933 com Adolf Hitler que ao ser feito chanceler criou o Nacional socialismo, o partido nazista que impôs ao país dura disciplina, vigilância total e o terror de Estado.

fascismo se apresentou como anti-comunista, anti-capitalista, como uma corporação que supera as classes e cria uma totalidade social cerrada. A vigilância, a violência direta, o terror e o extermínio dos opositores são características do fascismo histórico de Mussolini e Hitler e no neofascismo a violência também está presente.

fascismo nunca desapareceu totalmente, pois sempre há grupos que, movidos por um arquétipo fundamental, buscam a ordem de qualquer forma. É o neo-fascismo atual. Hoje no Brasil há uma figura mais hilária que ideológica que propõe o fascismo em nome do qual justifica a violência, a defesa da tortura e de torturadores, da homofobia e outras desviações sociais. Sempre em nome de uma ordem a ser forjada contra a atual desordem vigente usando de violência.

fascismo sempre foi criminal. Criou a shoá (eliminação de milhões de judeus). Usou a violência como forma de se relacionar com a sociedade, por isso nunca pode nem poderá se consolidar por longo tempo. É a perversão maior da sociabilidade humana. No Brasilnão será diferente. Aqui não terá chances de se impôr.

Ensaio em memória de Catarina Lutero e Jenny Marx por ocasião do jubileu das “Teses” (1517) e do “Capital” (1867)

Jenny von Westphalen Marx nasceu, tal qual Catarina von Bora Lutero, de uma família cujos membros foram um dia servidores da nobreza”, escreve Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. O artigo, originalmente publicado na revista Convergência, foi enviado pelo autor para ser publicado nos 200 anos do nascimento de Karl Marx, debatido na revista IHU On-Line, no. 525, sob o título Karl Marx, 200 anos – Entre o ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões.

Eis o artigo.

O ano 2017 nos lembra, além do início da devoção à Nossa Senhora de Aparecida(1717) e do centenário da Revolução Russa (1917), de duas publicações que fizeram história. Faz 500 anos que Lutero pregou 95 teses à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg (Alemanha), e faz 150 anos que Marx publicou o primeiro volume do “Capital” com o título “Crítica da economia política”.

As “Teses”, de 1517, visavam à Reforma da Igreja Católica, o “Capital”, de 1867, à Revolução como emancipação da classe operária. A Reforma queria construir uma Igreja mais próxima ao Evangelho de Jesus. A Revolução visava, com o protagonismo da classe operária, instaurar a transformação moral de uma humanidade na qual haveria de coincidir o bem viver de cada um com o bem viver de todos. Ambas as publicações propuseram não somente interpretações diferentes da palavra de Deus e dos direitos humanos, mas novas práticas do ser cristão e do ser cidadão. Ambas as propostas de mudanças tiveram um grande impacto sociopolítico, e seus autores, de formas diferentes, foram perseguidos e tornaram-se refugiados: Lutero, em sua condição de herege proscrito, foi protegido por poderes políticos regionais; Marx, expulso de territórios ao alcance do governo da Prússia, foi apoiado por setores revolucionários ligados à classe operária. Dos “redimidos pela graça” de Lutero e da “classe redentora” de Marx, de suas esperanças e promessas de felicidade – assim no Céu como na Terra – nasceram militantes e mártires, santos e demônios.

Neste ensaio por ocasião do momento jubilar das “Teses” e do “Capital” quero lembrar e comparar, em suas semelhanças e diferenças, a vida sacrificada das mulheres de seus autores, a vida de Catarina Lutero (1499-1552) e Jenny Marx (1814-1881). Tenho uma suspeita prévia: A presença de Catarina e Jenny na vida de Lutero e Marx não pode ser reduzida a enfeites secundários de uma causa maior. A causa maior, as lutas por tolerância e diversidade, por justiça e igualdade, por emancipação e participação andam mancando e são destinadas ao fracasso se não tiverem um rosto feminino e masculino.

1. Catarina Lutero

Catarina retratada por Lucas Cranach
Imagem: Herzog August Bibliothek Wolfenbüttel
Wikimedia Commons

Catarina nasceu em 29 de janeiro de 1499, em Zülsdorf, junto à Lippendorf, ao sul de Leipzig (Alemanha). Aos três anos de idade perdeu sua mãe e com cinco anos foi deixada numa escola de religiosas Beneditinas de Brehna. Com 16 anos, tornou-se religiosa num convento cisterciense de Nimbschen. Graças à passagem pela vida conventual,Catarina recebeu uma boa formação, aprendeu a ler e a escrever (um privilégio naquela época), apropriou-se do latim litúrgico, de saberes elementares da cozinha e costura, da medicina natural e da agricultura.

Em 1517, as Teses de Lutero começaram a agitar o país. Apesar do silêncio rigoroso imposto à comunidade cisterciense, Catarinae outras religiosas do convento souberam do movimento de Wittenberg e simpatizaram com as ideias do reformador. Em 1523, Catarina conseguiu fugir de sua clausura para Wittenberg, acompanhada por um grupo de aventureiras corajosas. Algumas delas retornaram às suas famílias, outras foram ajudadas por Lutero e seus amigos a se reencontrar no mundo através de um trabalho e um casamento. Catarina ficou por dois anos como doméstica na casa do pintor Lucas Cranach, que nos deixou um quadro bonito dela. A sina das mulheres da época era essa: da tutela do pai às prendas domésticas e à obediência de um marido.

O ano de 1525 foi de grande convulsão social. Os camponeses se revoltaram contra sua condição de vassalos de príncipes e nobres. Depois do grande massacre dos camponeses em Frankenhausen, um dos seus líderes ideológicos, Thomas Müntzer, pastor protestante e ex-aluno de Lutero, em Mühlhausen, 27 de maio 1525, foi publicamente decapitado. No mesmo ano, o reformador já se havia pronunciado “Contra as hordas salteadoras e assassinas dos camponeses”. A libertação dos camponeses do jugo feudal fracassou, não sem o apoio de Lutero. Em sua análise clássica “As guerras camponesas na Alemanha” (Grijalbo 1977), Friedrich Engels opina: Lutero, o protegido do príncipe da Saxônia e professor renomado de Wittenberg deixou cair por terra os elementos populares de sua Reforma e se tornou representante de uma Reforma burguesa.

Em 13 de junho de 1525, poucas semanas depois da chacina dos camponeses, Lutero e Catarina se casaram – ela com 26 anos de idade e por opção, ele com 42, empurrado pelos amigos. Ambos se formaram em conventos e não estavam propriamente preparados para a vida conjugal. O monge Martinho gostava de trabalhar no silêncio e, ao mesmo tempo, era detentor cortejado do monopólio da palavra, no púlpito e na mesa. A monja Catarina, que escapou do silêncio obrigatório dos cistercienses, gostava da prosa contínua. O início da convivência não foi fácil. Mesmo assim, na literatura, seu matrimônio se tornou por séculos o modelo de uma união de pastores, com divisão de trabalho: a esposa cuidando da organização do lar e o marido concentrado na parte espiritual e no pastoreio, mas também como pai amoroso. Tudo segundo e, às vezes, além do modelo de uma família burguesa da época. Da conquista do México e da derrota dos Astecas, em 1521, que o próprio Cortez amplamente descreveu em suas Cartas que circulavam pela Europa, não se encontra nenhum eco na fala nem nos escritos do reformador.

O príncipe Johann da Saxônia, irmão de Frederico, o Sábio, recém-falecido, que era o grande protetor de Lutero, doou ao casal o mosteiro dos agostinianos de Wittenberg e suas dependências. Portanto, também depois do casamento, Luteroestava em sua casa conventual, porém sem guardião e ecônomo, como é costume nos conventos. Essa parte foi assumida por Catarina, que transformou o convento em casa movimentada por amigos, viajantes e hóspedes, e numa pensão para estudantes, que se tornou uma fonte de renda. Lutero, em tom de admiração e queixa de sua “domina Käthe”, que não era uma assídua leitora da Bíblia, escreve a Justo Jonas, prepósito da igreja do Castelo e seu amigo sobre Catarina, que se assemelhou mais com a Martha do Evangelho do que com a Maria: “Ela lida com carroças, prepara a terra, apascenta e guia o gado, faz cerveja etc. Entre uma e outra atividade também começa a ler a Bíblia”. Nem sempre teve tempo para assistir, à noite, as famosas “Conversas à mesa”. Dos axiomas do marido (ser salvo “somente pela fé”, “somente pela graça”, “somente pela cruz de Cristo”) compreendeu o essencial. Sua religiosidade estava mais próxima à fé das mulheres do povo do que à compreensão dos teólogos. Para compreender a venda das indulgências como obra do diabo não precisava de um estudo teológico aprofundado. Catarina acompanhou as discussões teológicas de Martinhocom o bom senso de uma dona de casa e com o realismo de alguém que diariamente precisa cuidar da comida na mesa e da hospedagem de uma casa de trânsito para amigos, estudantes e admiradores do marido. A imagem que temos de Catarina consta em alguns escritos de Lutero e de gente que passou por sua casa. Dela mesmo, praticamente, a história não preservou nenhum escrito.

Da união de Lutero com Catarina nasceram seis filhos. Em 1529, com a morte da irmã de Lutero, o casal acolheu ainda as seis crianças dela. O antigo convento dos agostinianos tornou-se também uma casa de trânsito para a irmã morte. A primeira filha do casal, Elizabeth, morreu aos oito meses de idade, e Madalena, a segunda, faleceu aos 13 anos. Repetidas vezes, Lutero chamou Catarina de “estrela da manhã de Wittenberg”, já que diariamente ela se levantava às quatro horas da madrugada, mas também porque se tornou luz em suas noites escuras de depressão e, com o saber da medicina popular da época, enfermeira de um marido com múltiplas doenças e superstições da época, indisciplinado no trabalho e na comida. Ao ler o “Catecismo Menor” (1529), os sermões e a correspondência daquele tempo, percebe-se como a experiência familiar enriqueceu a vida cotidiana do Dr. Lutero.

Depois da morte do marido (1546), Catarina experimentou o desamparo das viúvas bíblicas. Perdeu a segurança do lar, garantida pela autoridade de Lutero e por seu salário da universidade, de 100 florins. Teve de enfrentar processos jurídicos pela herança, presenciou lutas religiosas (“guerra smalkaldiana”) e fugiu, com os filhos, da peste que devastava Wittenberg. A caminho de Torgau, acidentou-se gravemente com sua carroça. Às feridas do acidente juntou-se uma pneumonia. Dia 20 de dezembro de 1552 veio a falecer.

Numa carta a um amigo, Lutero teria escrito: “Minha querida Cate me mantém jovem […]. Sem ela, eu ficaria totalmente perdido. Ela aceita de bom grado minhas viagens e, quando volto, está sempre me aguardando com alegria. Cuida de mim nas minhas depressões e suporta meus acessos de cólera. Ela me ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois Dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia vierem a escrever a história de tudo o que já tem acontecido (a Reforma), espero que o nome dela apareça junto ao meu”. Não consegui identificar a fonte desse diálogo. Mas, mesmo como fioretti contém um núcleo de veracidade. Certamente, Catarina não foi a propulsora da Reforma, mas seu sustentáculo.

2. Jenny Marx (1814-1881)

Jenny ao lado de Karl Marx | Foto: Portal Vermelho

Jenny von Westphalen Marx nasceu, tal qual Catarina von Bora Lutero, de uma família cujos membros foram um dia servidores da nobreza. Jenny tinha dois anos quando seu pai foi transferido para Trier, onde assumiu no governo distrital o cargo de um funcionário superior. O pai Heinrich, de Karl Marx, era um “cristão novo”. Depois da presença napoleônica na Renânia (“Reino Real de Westfalen”, 1807-1813), a Prússiase apropriou, em 1815, de muitas partes territoriais da Renânia, e aboliu a legislação progressista de Napoleão. Assim, a região católica de Trier foi governada pela Prússia luterana que não permitiu o exercício profissional de Judeus na esfera do direito. Teria sido ainda um vento tardio do antijudaísmo de Lutero? O jovem Heinrich Marxpassou do judaísmo para o protestantismo na cidade católica de Trier, onde se tornou um advogado reconhecido. As famílias de Jenny e Karl tiveram contatos sociais nos círculos esclarecidos de Trier, e foi Ludwig von Westphalen quem introduziu JennyKarl nas ideias da Revolução FrancesaMarx dedicou sua tese doutoral ao futuro sogro, Ludwig von Westphalen.

Jenny e Karl se conheciam desde os tempos de colégio. Marx conquistou sua Jenny, que teve muitos pretendentes, com poemas de amor e investiu nessa relação com ela por longos anos e até por um noivado clandestino (1836).

Depois dos estudos de Karl em direito, filosofia, história em Bonn e Berlim, e um doutorado em Jena (1841), e depois de uma rápida passagem por Köln, como redator-chefe do jornal liberal Rheinische ZeitungJenny e Karl se casaram no civil e religioso, em 19 de junho de 1843, ela com 29 anos, ele com 25. Tiveram sete filhos, que nasceram em 1844 (Caroline), 1845 (Laura), Edgar (1847), Henry Edward Guy(1849), Francisca (1851), Eleanor (1855), e o último, que morreu logo após seu nascimento, em 1857. Três chegaram à idade adulta. Duas das três filhas sobreviventes, Eleanor (+1889) e Laura (+1911), se suicidaram.

Logo depois do casamento, Jenny e Karl se transferiram para Paris, já que o jornal de Köln, onde Marx trabalhava, estava proibido desde março daquele ano. Em Paris, onde Karl exercia um trabalho jornalístico, nasce Caroline, sua primeira filha. De Paris, datam também as relações com EngelsBakuninHeine e muitos outros. Contra os interesses de sua classe social, Friedrich Engels tornou-se o esteio financeiro da família Marx em períodos nos quais faltou comida para os filhos e dinheiro para pagar o aluguel. O brilho intelectual de Marx não resplandeceu em sua situação econômica.

Por intervenção do governo da Prússia, em 25 de janeiro de 1845, o casal foi expulso da França e refugiou-se em Bruxelas. Os governantes nobres da Prússia eram luteranos e antissocialistas. No exílio de Bruxelas, em 26 de setembro de 1845, nasce sua filha Laura e, em 3 de fevereiro de 1847, seu filho Edgar. Em Bruxelas, em 1848, foi publicado o “Manifesto do Partido Comunista”, escrito por Marx e Engels. Na única página do original que ainda existe, as primeiras linhas mostram a letra de Jenny. Em 4 de março de 1848, o “Manifesto” foi a razão da prisão e expulsão de Jenny e Karl de Bruxelas.

Jenny não foi um mero apêndice da fama de seu marido. Ela transformou a letra de Karl, às vezes quase ilegível, num manuscrito publicável e traduziu muitos dos seus textos para o francês, além de dominar o inglês. Várias de suas resenhas do teatro londrino foram publicadas em Frankfurt. Esse tempo de “secretária de Karl”, confessa Jenny, foi o tempo “mais feliz da minha vida”. Sem a compreensão intelectual desses textos ela não poderia ter feito esse trabalho de “tradutora”. A vida cotidiana em pobreza permanente, a ausência do marido por causa de viagens e congressos, sua embriaguez, doenças e a educação dos filhos representaram desafios na convivência familiar de Jenny com seu parceiro. Na Páscoa de 1852 morreu Francisca, por causa de uma bronquite. Na mesma noite, lembra Jenny em sua autobiografia, “nós nos deitamos no chão, as três crianças vivas conosco, chorando pelo anjinho, que frio e pálido descansou ao nosso lado. […] Foi o tempo da nossa pobreza mais amarga”. Para comprar um caixão, Jenny bateu em muitas portas e foi, finalmente, atendida por um refugiado francês.

Desde sua passagem por Bruxelas, Jenny trouxe da casa de sua família uma empregada doméstica, Helene Demuth, nove anos mais jovem que ela, para ajudar em casa. Helene, que se tornou uma socialista respeitada, acompanhou a família Marx em todas as suas peripécias. Em 23 de junho de 1851, ela teve um filho com Marx, que para preservar a reputação do pai, foi oficiosamente assumido por Engels, de quem também levou o nome: Frederich Lewis Demuth (1851-1929). Freddy foi entregue para pais adotivos, em Londres, logo após seu nascimento, e só depois de 111 anos sua identidade se tornou pública. Wilhelm Liebknecht, que fazia parte do círculo londrino de Marx, resumiu esse acontecimento com a frase lapidar: “Se diz, que diante do seu camareiro ninguém é um grande homem. Diante de Lenchen (Helene), Marx seguramente não foi”. A presença de Helene, depois do nascimento de Freddy, balançou, mas não abalou, o companheirismo e o amor entre Karl e Jenny. Em sua autobiografia, “Contornos de uma vida movimentada”, de 1865, Jenny caracteriza os anos 1851 e 1852 como “os anos das maiores e, ao mesmo tempo, das mais mesquinhas preocupações, tormentos, decepções e privações”. Mas, ainda 15 anos depois do nascimento de FreddyKarlescreveu a Jenny que estava de visita em Trier, para ver sua mãe no leito da morte: “Quando você está longe, meu amor para com você mostra-se como realmente é, como um gigante […]. O amor […] não ao proletariado, mas o amor para com a namorada e particularmente para com você, faz do homem novamente um homem”. Depois de 1851, a relação de Jenny com Karl continua respeitosa, amável, não resignada. Seus ideais e seu amor recíproco eram maiores que seus tropeços humanos. Jenny permaneceu amante da vida e de seu Karl. Já com as marcas da morte no rosto, ela escreveu ao médico Fernando Flecklers, em Carlsbad: “Gostaria de viver mais um pouco, meu querido doutor. É engraçado: quanto mais próximo chegamos ao fim da nossa história, tanto mais a gente fica amarrada neste `vale das lágrimas´” (29.09.1880). Jenny esteve ao lado de Karl até o fim, e Karl ficou profundamente abalado com a sua morte, falecendo um ano e meio depois de Jenny (14.03.1883).

3. Semelhanças e diferenças biográficas

A lealdade ideológica com seus maridos, o companheirismo familiar e a luta corajosa pela sobrevivência econômica aproximam Catarina Lutero e Jenny Marx. Catarina, 16 anos mais jovem que Lutero, já em condições estáveis, teve seis filhos, Jenny, em condições de migrante permanente e quatro anos mais idosa que Karl, teve sete filhos. A morte prematura perpassou as casas de ambas.

Na Igreja reformada, o prestígio de Lutero e a nobreza protestante regional garantiram certo conforto material à vida familiar cotidiana de Catarina e Martinho. Esta já não foi a situação de Jenny. A nobreza na mira do “Capital” de Marx perseguiu o casal desde os primeiros artigos publicados por Karl em Köln. O casal, que optou pela classe operaria, optou também pela pobreza e pela existência de migrantes e imigrantes na própria vida. Dos “lúmpen” do Capital e da comunidade revolucionária Karl e Jennynão esperavam privilégios.

Jenny e Karl se casaram apaixonados e sustentaram essa paixão como amor maduro até o fim de sua vida. O casamento de Catarina com Martinho era, no início, um casamento arranjado para Lutero, pois a Reforma entendia o casamento, não como sacramento, mas como algo que faz parte da criação divina e da vida humana. Porém, o casamento por motivo de coerência, com o próprio pensamento de Lutero, se transformou em estima, reconhecimento e amor incondicional de Martinho e Catarina.

Catarina e Jenny viveram na sombra e nos holofotes de seus maridos. Catarina correu aos braços do homem famoso que anos antes tinha publicado as “Teses”. Jenny acompanhou seu marido antes de escrever o “Capital”, que lhes trouxe austeridade e inimizades. Ambas assumiram e entenderam os axiomas fundamentais dos seus maridos e eram leais seguidoras, mesmo sendo pelas restrições legais da época barradas de frequentar universidades e estudos superiores. Neste ponto, Jenny tinha algumas vantagens, pela casa humanista em que nasceu e pelos amigos que a família e a causa operária juntaram no decorrer das suas fugas pelo mundo. De Catarina, praticamente nenhum escrito foi guardado. De Jenny, dispomos de uma autobiografia e de uma ampla correspondência. As amizades de Lutero eram mais restritas ao campo religioso. Suas máximas em torno da fé, da graça e de Jesus só interessavam aos camponeses e, provavelmente, também à classe operária na medida em que prometiam emancipação da miséria e da fome, além de alguma forma de protagonismo político. Esse já não foi o propósito de Lutero, que teve uma opção interclassista.

Os autores das “Teses” e do “Capital” não eram bons administradores de suas próprias economias e casas. Martinho e Karl deixaram esse papel para suas esposas, o que era mais fácil na casa estável de Lutero com um salário de 100 florins garantidos pela Universidade do que na itinerância e imprevisibilidade de remunerações por textos publicados ou de empréstimos de amigos.

Jenny e Catarina nos mostram que, para não reproduzir os vícios de uma sociedade no interior das grandes causas da humanidade, é preciso ampliar o território dessas causas defendidas, em nosso caso, por Lutero e Marx. Também as causas nobres podem tornar-se apriscos, cercas e muros. Nas reivindicações da fraternidade universal podem-se igualmente reproduzir hierarquias e uma divisão de classe entre “senhores” e “servidores”. Como socializar o gênio de uns com o não menos genial cuidado da sobrevivência do “gênio sacrificial” e serviçal dos outros? De certo modo, de ambos se espera que estejam dispostos a dar a vida pela causa de uma existência digna e emancipada que defendem. A vida emancipada não será o resultado final de uma luta, mas seu acompanhante em cada um de seus passos. A rigor, não é permitido distinguir entre protagonistas de causas e seus servidores ou servidoras. As causas realmente emancipadoras exigem a coincidência entre protagonista e servidor. As Jennies e Caties são as asas dessas causas que não levantam voo sem elas.

4. A Reforma continua, a Revolução mal começou

Reforma de Lutero não rompeu com o feudalismo medieval nem com certo autoritarismo patriarcal e fundamentalismo bíblico. A consciência do indivíduo como última instância da ação, a reivindicação de direitos subjetivos, a socialização da Bíblia entre letrados e certo cuidado com a educação dos filhos, sejam meninos ou meninas, já carregavam elementos da modernidade e da sociedade burguesa. Ao reconciliar-se com a modernidade, a Igreja católica, hoje, incorporou reivindicações essenciais da Reforma em seu universo institucional. Em todo caso, a Reforma continua.

Para o epitáfio de um memorial imaginário de Catarina e Jenny alguém propôs a seguinte frase: “Sustentaram com sua vida a gratuidade dos bens celestes e a partilha igualitária dos bens terrestres”. Entre a obra de Lutero e a de Marx existe uma afinidade orgânica que se revela na proximidade daqueles seguidores que deram sua vida pelas vítimas dos poderosos e, ao mesmo tempo, perpassa o pensamento de ambos uma linha divisória irredutível, porque uns situam o reino do bem viver exclusivamente na Terra, e os outros apenas seu início, porque consideram que o reino do bem viver, em sua plenitude, não está ao alcance dos humanos. Sabem que a luta pelo paraíso terrestre de todos não vai mais longe que um sonho numa noite de verão ou de um aglomerado de fanáticos.

No epitáfio acima falta algo essencial. Lutero, o reformador do tratado da graça, não previu essa graça para todos. Em seus polêmicos pronunciamentos contra judeus e camponeses mostrou que não abriu mão da penalidade do inferno da igreja nem do poder punitivo e assassino dos príncipes. No dia 1 de fevereiro de 1546, poucas semanas antes de sua morte, Lutero escreve de Eisleben à Catarina, sua esposa, que ele ia cuidar em seus sermões da expulsão dos 50 judeus que ainda sobreviviam em sua cidade natal e no mês de seu casamento com Catarina von Bora se posicionou ao lado dos príncipes contra os camponeses revoltados. O antijudaísmo do reformador, certamente, foi uma herança do seu passado católico e de sua socialização agostiniana.

Quem exclui as categorias “Céu” e “Inferno” do seu discurso sobre a realidade social, como Marx, pode cantar com Heinrich Heine: “O Céu deixamos para os anjos e os pardais”. Mas ele desqualifica o imaginário e a esperança como fatores atuantes sobre a realidade e não se livra do monopólio da punição pelo Estado, mesmo de direito constitucional, que limita o exercício da liberdade e privilegia a classe dos legisladores. A questão da gratuidade dos bens celestes e da partilha igualitária dos bens terrestres para com todos permanece uma questão aberta que nem cadeias, confessionários ou “guerras santas” podem solucionar. Já promessa de justiça e misericórdia divinas sem limites podem atuar em nossas realidades históricas conflitivas não como algo mágico, mas como motor e freio.

No campo religioso, grosso modo, os combatentes de então, hoje abrem mão de suas hostilidades, abraçam seus adversários num ecumenismo emergencial e assumem com reciprocidade piedosa pontos de vista essenciais do outro. A fuga dos rebanhos e a opção pelos pobres, secularização e relativismo, fundamentalismo e integralismo impõem a católicos e evangélicos históricos a sincronização de suas agendas. As “Teses” perderam seus dentes.

No campo sociopolítico, a aproximação entre classe operária e burguesia e/ou elite empresarial e financeira não aconteceu. A Revolução mal começou. Ou começou mal? Impulsionados por interesses comuns, as confissões religiosas históricas se aproximaram, divididos, internamente, por setores populares e interclassistas, enquanto o distanciamento entre as classes sociais cresceu tremendamente. “O Capital” de Marx, apesar da pátina de seus 150 anos, periodicamente ganha atualidade e reaparece como um tubarão nas praias de Acapulco onde interrompe a “alegre irresponsabilidade” (Laudato Si’, 59) das elites.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/581409-ensaio-em-memoria-de-catarina-lutero-e-jenny-marx-por-ocasiao-do-jubileu-das-teses-1517-e-do-capital-1867

Resistir e mobilizar – a luta continua

Desde o dia em que os primeiros europeus colocaram os pés nas Américas os povos indígenas que aqui viviam foram obrigados a aprender o significado da palavra resistir: “não ceder; defender-se; não sucumbir; sobreviver”. Hoje, dia 9 de agosto, comemora-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas, que marca a luta desses povos pela garantia de seus direitos previstos nas leis e regulamentos nacionais e internacionais.

A reportagem é publicada por Greenpeace, 09-08-2018.

Como explica Ademir Kaba, liderança do povo Munduruku, os povos indígenas viveram muitos massacres, porém, continuam resistindo. “Mesmo após todas essas transformações que ocorreram ao longo dos anos, nós continuamos resistindo e existindo no Brasil”, diz ele. “A gente constrói a nossa estratégia para que a gente possa resistir mais 500 anos mesmo diante de todas essas ameaças que vivemos. Construímos estratégias para sobreviver preservando a nossa cultura e os elementos que nos diferenciam”.

O povo Munduruku é um dos muitos povos que têm resistido contra a destruição de seus territórios, no coração da Amazônia. Eles lutam pela demarcação da Terra Indígena (TI) Sawre Muybu, no Pará, e contra a instalação de hidrelétricas e outros grandes projetos que atropelam suas vidas e seu futuro.
Em 2016 os Munduruku conseguiram barrar a construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós em seu território. Para isso puderam contar com o apoio de milhares de pessoas que se engajaram nessa luta. Foi uma grande vitória, mas as ameaças não pararam por aí: o governo insiste em não cumprir sua obrigação constitucional de demarcar o território que lhes é de direito e que garante a continuidade do modo de vida secular dos Munduruku.

Com o intuito de garantir a proteção do local e pressionar pela demarcação, no final de julho deste ano, o povo Munduruku realizou uma nova etapa da autodemarcação da TI Sawre Muybu. Este processo autônomo, que teve início em 2014, consiste em percorrer periodicamente todo o limite do território, abrindo uma linha na floresta e colocando placas indicando que o local é território indígena.

Munduruku denunciam a destruição da floresta

Quanto mais o governo demora para demarcar a Terra Indígena Sawre Muybu mais este local fica vulnerável à invasão. Durante a autodemarcação, os Mundurukudenunciaram a exploração madeireira e garimpeira no interior de seu território. Segundo eles, essas atividades estão destruindo seus lugares sagrados e as nascentes, igarapés e açaizais que são fonte de alimentação para eles. Conforme relataram, foi encontrada até uma pista de pouso no limite da terra indígena. “Nós queremos a demarcação para que a gente possa proteger nosso território. Não tem ninguém melhor do que os indígenas para vigiar”, disse Alessandra Korap, liderança Munduruku.

Jovens participam da luta pela defesa de seu futuro

Este ano a autodemarcação foi realizada pelos jovens Munduruku, mulheres e homens, que se reuniram em um encontro, dias antes, para trocar experiências sobre a luta e sobre a cultura Munduruku. “Ser guerreiro não é só caçar e pescar, é também saber acompanhar e ouvir os caciques, os sábios… Tudo isso foi discutido durante o encontro”, explicou Alessandra Korap.

Após a autodemarcação, diversas lideranças Munduruku foram para Belém, onde participam do evento “Belém + 30”, que acontece entre os dias 7 e 10 de agosto, e discutem os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais e o uso sustentável da biodiversidade. Os Munduruku presentes compartilharam a experiência de luta em defesa de seu território e seus direitos e contra a construção de hidrelétricas. Também apresentaram o “Protocolo de Consulta” e o “Mapa da Vida”, ambos realizados por eles. “A gente vai continuar lutando para defender o que nossos antepassados deixaram”, finaliza Alessandra.

Bolsonaro e seu estranho Deus das armas

Misturar o divino com o profano, a Igreja com o Exército e a fé com as urnas é preparar o terreno para novas guerras.

O comentário é de Juan Arias, jornalista, publicado por El País, 10—08-2018.

O ex-paraquedista Jair Bolsonaro, de extrema direita, candidato a presidente, considera como “uma missão de Deus” que o Brasil tenha um Governo formado por militares. Assim manifestou dias atrás no Fórum da União da Indústria de Cana de Açúcar(Unica), em São Paulo. “No meu ministério terei, sim, muitos militares”, afirmou. E seriam de primeira divisão, “atacantes como Neymar”. Pensa portanto, se ganhar as eleições, em colocar nas mãos desses generais do Exército os ministérios-chaves do seu Governo. E tudo isso por fidelidade a Deus.

Bolsonaro justifica um possível Executivo composto por militares argumentando que, se os presidentes anteriores escolheram como ministros “guerrilheiros, terroristas e corruptos”, como diz polemicamente, por que não poderia ele convocar generais do Exército? O ex-paraquedista quis unir em um só abraço, hábil e eleitoreiramente, as duas instituições que aparecem nas pesquisas como as mais bem avaliadas pelos brasileiros: o Exército e a Igreja. Pretende fazer um governo de militares como algo que Deus lhe pede.

Desse modo, conseguiria o milagre, ou a aberração, de que o Exército pudesse governar o país sem ter que dar um golpe militar.

Ascanio Seleme retratou em uma de suas colunas no O Globo essa conjunção de Bolsonaro entre a Igreja e os militares durante a convenção que sacralizou sua candidatura à presidência: “Em alguns momentos, a convenção parecia um culto de uma grande igreja evangélica (…). Em outros momentos, a sensação era de que se estava dentro de um quartel”.

Bolsonaro é um personagem que sabe, além do mais, usar a falácia de querer resolver problemas complexos com receitas simplistas. Uma delas é a de querer tirar o país da crise política, econômica e moral que o castiga com uma equipe de governo formado por membros do Exército. Demonstrou que leva a sério esse projeto ao escolher como vice o general Mourão, que já tinha insinuado, meses atrás, a necessidade de uma intervenção militar frente à crise política e institucional que agita o Brasil.

Trata-se de um militar defensor da ditadura e da tortura, que se permitiu em seguida arriscar palpites culturais ao afirmar, com tons racistas, que os brasileiros sofrem da “indolência dos indígenas” e da “malandragem dos africanos”. Sua função de vice-presidente o coloca constitucionalmente, além disso, na possibilidade de chegar à presidência se, por algum motivo, o titular tiver que abandonar o cargo, algo quase já normal neste país.

Desde antes de Lula chegar ao poder foi criado o ministério da Defesa ocupado por civis, mas agora teríamos com Bolsonaro a anomalia de um Governo em democracia formado por generais. O Brasil apresentaria, nesse caso, uma série de problemas que poderiam comprometer gravemente a democracia. Os militares, cuja função é a de defesa do Estado, estariam governando, e isso poderia arrastar as demais instituições à confusão. É como se alguém quisesse criar um governo de juízes. Seria a morte do Estado de direito, que se funda na divisão de poderes. E tudo isso amalgamado na ambiguidade religiosa de Bolsonaro e seus acólitos, que já revelaram mais de uma vez querer governar com a Bíblia mais do que com a Constituição.

Não sei que estranho Deus das armas inspirou Bolsonaro a formar um Governo com o Exército para resolver os problemas do país. Não pode ter sido o Deus cristão, o dos evangelhos, cuja fé o militar professa, já que esse é um Deus de paz – “Todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão” (Mateus, 26,52) –, de perdão e não de vingança, de respeito pelos diferentes, e defensor de todas as liberdades – “A verdade vos livrará” (João, 8,31) –, o Deus que condena a ambiguidade, que pediu a seus discípulos que respeitassem as instituições sem as confundir: “Deem a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César” (Mateus, 17,24ss), respondeu Jesus aos fariseus que buscavam tentá-lo, confundindo Deus com o Estado.

Misturar o divino com o profano, a Igreja com o Exército e a fé com as urnas é preparar o terreno para novas guerras como as que a humanidade já sofreu no passado, muitas delas realizadas em nome desse Deus militar que hoje parece inspirar Bolsonaro. Pastores evangélicos e cristãos em geral começam a questionar se podem, sem trair sua consciência, votar num candidato cujo Deus é mais o das metralhadoras e da morte que o dos ramos de oliveira da paz, que são o coração do cristianismo ainda não poluído pelo poder profano.

Os conceitos que nos faltam. Artigo de Boaventura de Sousa Santos

Direitos Humanos, Democracia, Paz e Progresso terão se transformado em biombos para ocultar um mundo cada vez mais desigual, violento e alienado? Mas como superá-los?

O artigo é de Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, publicado por Outras Palavras, 05-08-2018.

Eis o artigo.

Os seres humanos, ao contrário dos pássaros, voam com raízes. Parte das raízes estão nos conceitos que herdamos para analisar ou avaliar o mundo em que vivemos. Sem eles, o mundo pareceria caótico, uma incógnita perigosa, uma ameaça desconhecida, uma jornada insondável.

Os conceitos nunca retratam exatamente as nossas vivências, até porque estas são muito mais diversas e mutantes que as que servem de base aos conceitos dominantes. Estes são, afinal, os conceitos que servem os interesses dos grupos social, política, econômica e culturalmente dominantes, ainda que matizados pelas modificações que lhes vão sendo introduzidas pelos grupos sociais que resistem à dominação. Estes últimos nem sempre recorrem exclusivamente a esses conceitos. Muitas vezes dispõem de outros que lhes são mais próximos e verdadeiros, mas reservam-nos para consumo interno. No entanto, no mundo de hoje, sulcado por tantos contatos, interações e conflitos, não podem deixar de tomar em conta os conceitos dominantes, sob o risco de verem as suas lutas ainda mais invisibilizadas ou mais cruelmente reprimidas. Por exemplo, os povos indígenas e os camponeses não dispõem do conceito de meio ambiente, porque este reflete uma cultura (e uma economia) que não é a deles. Só uma cultura que separa em termos absolutos a sociedade da natureza, de modo a pôr esta à disposição incondicional daquela, precisa de tal conceito para dar conta das consequências potencialmente nefastas (para a sociedade) que de tal separação podem resultar. Em suma, só uma cultura (e uma economia) que tende a destruir o meio ambiente precisa do conceito de meio ambiente.

Em verdade, ser dominado ou subalterno significa antes de tudo não poder definir a realidade em termos próprios, com base em conceitos que reflitam os seus verdadeiros interesses e aspirações. Os conceitos, tal como as regras do jogo, nunca são neutros e existem para consolidar os sistemas de poder, sejam estes velhos ou novos. Há, no entanto, períodos em que os conceitos dominantes parecem particularmente insatisfatórios ou imprecisos. São-lhes atribuídos com igual convicção ou razoabilidade significados tão opostos, que, de tão ricos de conteúdo, mais parecem conceitos vazios. Este não seria um problema de maior se as sociedades pudessem facilmente substituir esses conceitos por outros mais esclarecedores ou condizentes com as novas realidades. A verdade é que os conceitos dominantes têm prazos de validade insondáveis, quer porque os grupos dominantes têm interesse em mantê-los para disfarçar ou legitimar melhor a sua dominação, quer porque os grupos sociais dominados ou subalternos não podem correr o risco de deitar fora o bebê com a água do banho. Sobretudo quando estão a perder, o medo mais paralisante é perder tudo. Penso que vivemos um período com estas características. Paira sobre ele uma contingência que não é resultado de nenhum empate entre forças antagônicas, longe disso. Mais parece uma pausa à beira do abismo e a olhar para trás.

Os grupos dominantes nunca sentiram tanto poder nem nunca tiveram tão pouco medo dos grupos dominados. A sua arrogância e ostentação não têm limites. No entanto, têm um medo abissal do que ainda não controlam, uma apetência desmedida por aquilo que ainda não possuem, um desejo incontido de prevenirem todos os riscos e terem apólices contra todos eles. No fundo, suspeitam serem menos definitivamente vencedores da história quanto pretendem, serem senhores de um mundo que se pode virar contra eles a qualquer momento e de forma caótica. Esta fragilidade perversa, que os corrói por dentro, fá-los temer pela sua segurança como nunca, imaginam obsessivamente novos inimigos, e sentem terror ao pensar que, depois de tanto inimigo vencido, são eles, afinal, o inimigo que falta vencer.

Por sua vez, os grupos dominados nunca se sentiram tão derrotados quanto hoje, as exclusões abissais de que são vítimas parecem mais permanentes do que nunca, as suas reivindicações e lutas mais moderadas e defensivas são silenciadas, trivializadas pela política do espetáculo e pelo espetáculo da política, quando não envolvem riscos potencialmente fatais. E, no entanto, não perdem o sentido fundo da dignidade que lhes permite saber que estão a ser tratados indignamente e imerecidamente. Que melhores dias terão de vir. Não se resignam, porque desistir pode ser-lhes fatal. Apenas sentem que as armas de luta não estão calibradas ou não são renovadas há muito; sentem-se isolados, injustiçados, carentes de aliados competentes e de solidariedade eficaz. Lutam com os conceitos e as armas que têm mas, no fundo, não confiam nem nuns nem noutras. Suspeitam que enquanto não tiverem confiança para criar outros conceitos e inventar outras lutas correrão sempre o risco de serem inimigos de si mesmos.

Tal como tudo o resto, os conceitos estão à beira do abismo e olham para trás. Menciono, a título de exemplo, um deles: direitos humanos.

Nos últimos cinquenta anos os direitos humanos transformaram-se na linguagem privilegiada da luta por uma sociedade melhor, mais justa, menos desigual e excludente, mais pacífica. Tratados e convenções internacionais existentes sobre os direitos humanos foram sendo fortalecidos por novos compromissos no plano das relações internacionais e do direito constitucional, ao mesmo tempo que o elenco dos direitos se foi ampliando de modo a abranger injustiças ou discriminações anteriormente menos visíveis (direitos dos povos indígenas e afro-descendentes, mulheres, LGBTI; e direitos ambientais, culturais, etc.). Movimentos sociais e organizações não-governamentais foram-se multiplicando ao ritmo das mobilizações de base e dos incentivos de instituições multilaterais. Em pouco tempo, a linguagem dos direitos humanos passou a ser a linguagem hegemônica da dignidade, uma linguagem consensual, eventualmente criticável por não ser suficientemente ampla, mas nunca impugnável por algum defeito de origem.

Claro que se foi denunciando a distância entre as declarações e as práticas e a duplicidade de critérios na identificação das violações e nas reações contra elas, mas nada disso abalou a hegemonia da nova literacia da convivência humana. Cinquenta anos depois, qual é o balanço desta vitória? Vivemos hoje numa sociedade mais justa, mais pacífica? Longe disso, a polarização social entre ricos e pobres nunca foi tão grande, guerras novas, novíssimas, regulares, irregulares, civis, internacionais continuaram a ser travadas, com orçamentos militares imunes à austeridade, e a novidade é que morrem nelas cada vez menos soldados e cada vez mais populações civis inocentes: homens, mulheres e, sobretudo, crianças. Em consequência delas, do neoliberalismo global e dos desastres ambientais, nunca como hoje tanta gente foi forçada a deslocar-se das regiões ou dos países onde nasceu, nunca como hoje foi tão grave a crise humanitária. Mais trágico ainda é o facto de muitas das atrocidades cometidas e atentados contra o bem-estar das comunidades e dos povos terem sido perpetrados em nome dos direitos humanos.

Claro que houve conquistas em muitas lutas, e muitos ativistas de direitos humanos pagaram com a vida o preço da sua entrega generosa. Acaso eu não me considerei e considero um ativista de direitos humanos? Acaso não escrevi livros sobre as concepções contra-hegemônicas e interculturais de direitos humanos? Apesar disso, e perante uma realidade cruel que só não salta aos olhos dos hipócritas, não será tempo de repensar tudo de novo? Afinal, a vitória dos direitos humanos foi uma vitória de quê e de quem? Foi a derrota de quê e de quem? Terá sido coincidência que a hegemonia dos direitos humanos se acentuou com a derrota histórica do socialismo simbolizada na queda do Muro de Berlim? Se todos concordam com a bondade dos direitos humanos, ganham igualmente com tal consenso tanto os grupos dominantes como os grupos dominados? Não terão sido os direitos humanos uma armadilha para centrar as lutas em temas setoriais, deixando intacta (ou até agravando) a dominação capitalistacolonialista e patriarcal? Não se terá intensificado a linha abissal que separa os humanos dos sub-humanos, sejam eles negros, mulheres, indígenas, muçulmanos, refugiados, imigrantes indocumentados? Se a causa da dignidade humana, nobre em si mesma, foi armadilhada pelos direitos humanos, não será tempo de desarmar a armadilha e olhar para o futuro para além da repetição do presente?

Estas são perguntas fortes, perguntas que desestabilizam algumas das nossas crenças mais enraizadas e das práticas que sinalizam o modo mais exigentemente ético de sermos contemporâneos do nosso tempo. São perguntas fortes para as quais apenas temos respostas fracas. E o mais trágico é que, com algumas diferenças, o que acontece com os direitos humanos acontece com outros conceitos igualmente consensuais. Por exemplo, democracia, paz, soberania, multilateralismo, primado do direito, progresso. Todos estes conceitos sofrem o mesmo processo de erosão, a mesma facilidade com que se deixam confundir com práticas que os contradizem, a mesma fragilidade perante inimigos que os sequestram, cooptam e transformam em instrumentos dóceis das formas mais arbitrárias e repugnantes de dominação social. Tanta desumanidade e chauvinismo em nome da defesa dos direitos humanos, tanto autoritarismo, desigualdade e discriminação transformados em normal exercício da democracia, tanta violência e apologia bélica para garantir a paz, tanta pilhagem colonialista dos recursos naturais, humanos e financeiros dos países dependentes com o respeito protocolar da soberania, tanta imposição unilateral e chantagem em nome do novo multilateralismo, tanta fraude e abuso de poder sob a capa do respeito das instituições e do cumprimento da lei, tanta destruição arbitrária da natureza e da convivência social como preço inevitável do progresso!

Nada disto tem de ser inevitavelmente assim e para sempre. A mãe de toda esta confusão, induzida por quem beneficia dela, de toda esta contingência disfarçada de fatalismo, de toda esta paragem vertiginosa à beira do abismo reside na erosão bem urdida, nos últimos cinquenta anos, da distinção entre ser de esquerda e ser de direita, uma erosão levada a cabo com a cumplicidade de quem mais seria prejudicado por ela. Foi por via dessa erosão que desapareceram do nosso vocabulário político as lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas, anti-fascistas, anti-imperialistas. Concebeu-se como passado superado o que afinal era o presente mais do que nunca determinado a ser futuro. Nisto consistiu estar no abismo a olhar para trás, confiante que o passado do futuro nada tem a ver com o futuro do passado. Esta a maior monstruosidade do tempo presente.